As lições de Sygne de Coûfontaine. O poder das mulheres e as mulheres de poder – Markos ZAFIROPOULOS

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As lições de Sygne de Coûfontaine. O poder das mulheres e as mulheres de poder – Markos ZAFIROPOULOS

DOSSIER

ARTICLES EN LANGUE PORTUGAISE

 

Antes de propor um tipo de esquema diretor apropriado para ordenar nosso ponto de vista sobre as relações complexas dividindo no campo sociopolítico o destino da mulher, eu gostaria de primeiramente nos conduzir ao centro do exemplo clínico. Este nos colocará novamente, com Lacan, na pista dos traços, talvez os mais distintos, do que eu chamarei a situação da mulher em relação ao poder político e social da modernidade. Situação que foi encarnada de maneira paradigmática pelo que Lacan teria escolhido, no livro 8 do seminário intitulado Seminário, livro 8 : a transferência[1], como analisador da atualidade do mito de Édipo polarizando o inconsciente do sujeito da modernidade ; sujeito aqui no feminino, a saber, a sublime Sygne de Coûfontaine da qual Claudel situa o destino trágico no ambiente do drama pós-revolucionário, período durante o qual a França muda de Nome-do-Pai (sobre o conteúdo) e onde o poder napoleônico se instala, mesmo que já perturbado pela Restauração onde viu-se Luís XVIII transitoriamente recuperar o trono da França.

 

Em suma, sob a pluma do poeta redigindo uma trilogia – que por sinal desmente a ideia da ausência da tragédia na modernidade – os machos da França se estripam à serviço dos bens e a primeira cena da obra « L’otage »[2] se abre sobre o reencontro dos Coûfontaine. Nessa primeira cena, Sygne conta ao primo que acaba de retornar da guerra, como, depois do assassinato de seus pais e do desmembramento do domínio familiar, ela se obstinou a recuperar sua unidade eu-ideal típica ao domínio, da mesma maneira em que ela se obstinou a recompor o crucifixo, o homem de bronze, novamente supliciado pelo ódio dos revolucionários, tendo acrescentado ao massacre dos monges cisterianos que a família abrigava em sua propriedade, o martírio do Cristo, que ela pacientemente reuniu o corpo fragmentado.

 

E agora o grande bom-deus negro danificado pelo sol e a chuva, o escandaloso supliciado, eis-Lhe aqui entre essas paredes escondido dos homens conosco e nós recomeçamos com ele como exilados/ Que se fazem um lar de dois tições colocados atravessados[3]

 

…diz ela, para concluir o relato feito ao primo. Relato pelo qual verificamos que nessa interpretação cristã do axioma de Marx  « a terra herda do filho do camponês » – a propriedade como bem se encontra elevada à dignidade do sagrado, o que coloca na boa ordem a concepção que devemos fazer da organização do regime das relações entre o homem e os bens : nesse imbróglio, os bens são primordiais. De onde se deduz, que se dispor à seu serviço é, de uma certa maneira, a ordem natural da alienação do homem cuja saída pela psicanálise Lacan busca. « Como a terra nos dá seu nome, eu lhe dou minha humanidade […] É porquê precedido do de, eu sou o homem que leva seu nome por excelência »[4], confirma George de Coûfontaine, regressado da guerra com apenas o nome como tesouro, porque sem sua esposa que o teria desonrado com o Dauphin e sem seus filhos, mortalmente levados por uma febre estrangeira.

 

Desde o início, compreendemos que a aventura guerreira da destruição dos bens (de longe) privou o macho dos Coûfontaine das suas posses (sua mulher e seus filhos), da mesma forma que de perto, a Revolução o privou da unidade da sua terra, da unidade de seu corpo, da unidade de seu Deus e que ele voltou à paciente obra erigida por Sygne (a filha) ao remontar a figura divina do homem de bronze à qual ela se consagra para garantir a estabilidade do espelho dominial, no qual o nome capitonne como substrato ao regime simbólico da nobreza cristã, os herdeiros dessa terra. É a este capitonnage que a virgem Sygne se fez de fiadora, como Antígona se fez há vinte e cinco séculos, segundo Lacan, a fiadora do significante mesmo encarnado pela singularidade de seu irmão.

 

Na desgraça da destruição radical dos bens, para onde se precipitam de bom grado os machos em Nome do Pai, retorna, de maneira inquietante, à heroína trágica a função de garantir o regime simbólico da linguagem e dos Nomes. O que nos leva, ao mesmo tempo, ao regime da ordem do sagrado do mais além dos bens que o pai, mesmo que morto e desmembrado pelos filhos, se encontra apoiado pela filha. Esta se dispõe como vestal, ou mesmo cariátide da ordem simbólica onde acontece o renovamento das trocas dos bens e das gerações.

 

Em resumo, existe um mais além dos bens e um mais além dos bens da Polis. Eis-que, em minha opinião, o que nos leva à pensar Sygne assim que Antígona ou Medéia, reunidas aqui sob as relações que elas mantém com a escolha a qual elas fazem prevalecer pelo regime do ser, do sagrado e do particular contra o regime das posses, da Polis e da política do machos.

 

E vocês compreendem que nesse sentido venho tentando articular um tipo de desarmonia relativa opondo o poder dos machos que se afrontam pelos bens, ao poder que eu não recuarei em designar como espiritual do engajamento sociopolítico da verdadeira mulher ou das mulheres como mulheres. Aqueles que seguem meus trabalhos perceberão aqui um tipo de relance da oposição que promovo, desde minha Questão feminina[5], para distinguir no plano heurístico o estilo de massificação dos machos que se faz em Nome dos bens, daquele das mulheres como mulheres a qual se faz em Nome do ser, e então em Nome do nada que motiva o desejo contra o regime dos bens. Regime este onde se impõe a satisfação e, consequentemente, o fim do desejo.

 

Eu voltarei ao tema do desejo. Pois, se eu já disse que esta oposição entre ser e ter exige, dos freudianos em particular, que eles completem o campo de pesquisas relacionado ao que eu chamarei de socialização diferencial dos sexos. Acrescento que esta socialização não é sem variação sócio-histórica. Quer dizer, se eu digo que falta no texto de Freud Psicologia de Massas[6] um equivalente à formação de massa das mulheres e, se digo que esse equivalente é pelo menos esboçado no belo texto de Freud, O Tabu da Virgindade[7], não é, do meu ponto de vista, ainda suficiente, pois tanto com relação ao ser quanto ao ter (nas questões sociopolíticas), é um fato que a situação das mulheres evolui historicamente, pelo menos no Ocidente (e concomitantemente, também a dos homens).

 

Mas, voltemos à Sygne, aonde a deixei. Pois, como vocês compreenderam e ao fundo dos reencontros da unidade sagrada da Terra, os primos se encontraram recompostos pela atração do domínio reagrupado, como pela lógica da aliança a ser relançada. Logo, eles declaram seu amor fazendo promessa de casamento.

 

Tudo iria bem então, no melhor dos mundos trágicos da nobreza da França, não fosse pelo primo que não encontrou nada melhor do que trazer em sua bagagem o Papa, previamente retido em uma cidadela napoleônica, e que pôs na cabeça de se infiltrar em torno dos territórios do Rei da França para relançar o partido da aliança entre a Igreja e o Rei.

 

Cabum ! A política onde se extenua o poder dos machos é, pela culpa do menino, instalada primeiro clandestinamente na casa de Sygne e, se for preciso para ver claramente diferenciar o homem da mulher no que diz respeito à análise do registro complexo do poder, eles são, os dois sexos, e desse ponto de vista, não sem relação porque os atos de um – aqui os homens feitos reféns – tem uma incidência evidente sobre o destino dos outros – aqui o destino da mulher, relegada primeiro a serviço dos bens, depois elevada nesse drama ao nível da crucificação e assim do sagrado, como também veremos.

 

Bom, avanço : o Papa esta a postos e eis que, no ato II, a cortina se eleva sobre o barão Turelure, um homem grande com nariz estreito e bastante torto, um oficial da República cujo leve mancar introduz um frisson no espectador, ainda mais se tratando do bastardo de uma cozinheira (antigamente ao serviço dos Coûfontaine) e de um curandeiro. E causa horror em Sygne quando confessa ter ele próprio, ordenado o assassinato em massa dos monges e também dos nobres pais de Sygne. « O que é verdade é bem verdade. Eu os mandei matar por amor à pátria no puro entusiasmo de meu coração », se exclama ele, nos fazendo verificar mais uma vez – o que é minha tese de longa data – que os crimes de massa são cometidos em Nome do pai (no caso, a pátria). Crimes estes sempre perpetuados por criminosos sem remorso. A confissão de Turelure no drama indica igualmente à Sygne que ela deve desde já ter em conta a correta amplidão de seu poder político de destruição, tanto como a amplidão de sua crueldade atrelada ao cargo. Isto é o que Turelure articula logo de início, para apontar, em seguida, que sabe da presença do Papa na propriedade dos Coûfontaine. Como resultado, se mostra naturalmente pronto para a captura do chefe da Igreja, à menos que a nobre Sygne consinta casar com ele.

 

« Sygne, salve teu Deus e teu Rei »[8], murmura em voz baixa o infame Turelure, antes de indicar sua vontade : « Eu tomarei a terra, e a mulher, e o nome »[9].

 

Eis que estão situadas as questões políticas quanto as posses do lado dos machos. Já do lado de Sygne, a armadilha se fechou sobre ela, pois ela está agora encurralada num degradante casamento para salvar o Papa, a Igreja, Deus e o Rei, quer dizer, para salvar tudo em que ela acredita. Mas… a diferença entre os sexos obriga, oferecer seu corpo à serviço da política dos bens não é evidente para a heroína. « Devo eu salvar o Papa ao preço de minha alma »[10] se pergunta a nobre virgem que ama Georges de Coûfontaine, tem horror de Turelure, etc. Mas… não façamos durar o suspense, a virgem consente no entanto – sob os ataques repetitivos de seu diretor de consciência, o cura Badillon – a casar com o filho da serva e do feiticeiro – Eu cedo. E dessa maneira Sygne consente :

 

Assim então eu, Sygne, condessa de Coûfontaine,/ Esposarei de minha vontade própria Toussaint Turelure, o filho de minha serva e do feiticeiro Quiriace./ Eu o esposarei  face à Deus em três pessoas, e lhe jurarei fidelidade e nós colocaremos a aliança no dedo./ Ele será a carne da minha carne, e a alma da minha alma, e o que Jesus Cristo é para a Igreja, Toussaint Turelure será para mim indissolúvel./ Ele, o açougueiro de 93, todo coberto do sangue dos meus,/ Ele me pegará em seus braços todos os dias e não haverá nada meu que não seja dele,/ E dele nascerão os filhos nos quais seremos unidos e fundidos. Todos esses bens que coletei não para mim, / O dos meus ancestrais, o dos santos monges, / Eu lhe darei em dote, e será por ele que terei sofrido e trabalhado./ A fé que prometi, eu a trairei,/ Meu primo traído por todos e que não tem que a mim somente, / E eu também, eu serei a última que ele sentirá falta ![11]

 

Vejam a importância do progresso na mitologia ocidental quanto à história! Diferente da heroína trágica Antígona ou de Medéia, Sygne trai. Ela trai tudo que constitui seus valores para salvar o Papa, ou melhor, a aliança política da Igreja e da realeza. Sygne é levada aos extremos da abjecção para e pelo poder político dos machos. Deste ponto de vista e para avançar eu diria que Sygne não se isenta de nenhum dos deveres do casamento, haja vista que consentiu em vir a ocupar este lugar de objeto de troca que lhe designaram os homens do seu próprio meio :

 

  1. vem a ela um filho de Turelure e ela se torna assim mãe,
  2. mas tem mais, pois às regras do casamento, Sygne acrescenta de fato complacência aos deveres do amor pois, quando George de Coûfontaine quer acabar com seu marido ignóbil, Sygne se precipita mortalmente em frente à bala destinada à Turelure.

 

Do ponto de vista do que nos interessa, a saber, o lugar sociopolítico feito à mulher na cultura ocidental, lê-se então na trilogia dos Coûfontaine (que eu não faço aqui que apenas introduzir), um tipo de desarticulação histórica da situação da heroína trágica. Lacan não deixa de identificar esta articulação, colocando o acento no fato de ser levada à recusa, ser levada à traição de tudo em que ela crê, e pelo serviço dos bens que caracteriza o destino de Sygne e então por uma parte, ao menos, o destino inconsciente do sujeito da modernidade no feminino.

 

E ele tira esta lição que teremos à meditar, segundo a qual emerge uma forma moderna de castração que se anuncia da seguinte maneira :

 

Retira-se a alguém seu desejo e, em troca, é ele que se dá a algum outro – ocasionalmente, à ordem social. (…) Vocês entenderam bem, penso, o que eu disse – retira-se ao sujeito seu desejo e, em troca enviam-no ao mercado, onde ele entra no leilão geral. Quero dizer – não é isso o que acontece no nível de Sygne?[12]

 

Então, sim, existe de fato no início do destino de Sygne uma formidável ilustração dessa forma moderna da castração que propõe à verdadeira mulher a troca de sua postura sagrada de intransigente cariátide do desejo contra uma encarnação na qual ela consente em ser oferecida como objeto de troca e de gozo no campo do político opondo aqui o filho da República ao Rei e a Igreja. Mas existe também nesse lindo drama de Claudel, iluminado pelo simples fato de que Sygne ocupa o lugar de única personagem no feminino desta peça, uma formidável reviravolta, porque mesmo que até aqui foi bem à recusa de tudo o que lhe foi mais querido que Sygne parecia ter se abandonado literalmente ao se precipitar à morte, ela se desprende finalmente do lugar de objeto de troca ao qual ela foi obrigada como esposa e como mãe nesses tempos turbulentos da reprodução sociopolítica onde os filhos heterossexuais lhe colocaram à serviço de seus bens. Mercado ou registro de bens no qual ela consentiu, de antemão, em vir a se instalar. Então sim, Sygne recusa. Ela trai os valores mais preciosos de seu ser, para se colocar à serviço dos bens, isso está entendido, mas, de outro lado – eu sublinho – Sygne se recusa de sua recusa e ela sai de cena pelo suicídio, criando o temor entre os homens, pois perto de sua cama de agonia os machos agora se aglomeram, na primeira fila o cura Badillon e até mesmo, segundo as versões, o Rei da França.

 

Os machos lhe pedem ao mesmo tempo perdão – prova que eles não são sem compaixão – e eles lhe pedem para ver por uma última vez seu filho. Mas Sygne se mantém inflexível e mulher entre as mulheres, verdadeira mulher, ela se recusa a perdoar, como ela recusa de ver seu filho ou seu ser-mãe. Nisto, ela vai de encontro a Medéia. Após, em seu leito de morte, ela

 

Se ajeita subitamente e estende violentamente os dois braços em cruz acima da cabeça; após, recaindo sobre o travesseiro ela entrega o espirito com um fluxo de sangue. E senhor Badillon seca-lhe piedosamente a boca e a face. Em seguida caindo em prantos, ele cai de joelhos ao pé da cama.[13]

 

Nós somos aqui, levados « para além de todo valor da fé »[14], conclui Lacan. E, de fato, Sygne diferentemente de Antígona, não apoia o desejo dos Deuses, o que faz o poder da mulher como mulher, Sygne traiu à serviço dos bens dos irmãos, ela cedeu tanto à Badillon quanto à Turelure, ela sacrificou seu ser pelas questões das posses da aliança soldando os interesses do Papa aos do Rei. Ela se tornou a esposa da abjecção e a mãe de uma criança não desejada. Mas ela escapa deste funesto destino de ser o objeto da dominação masculina por esse tipo de suicídio que conduz os machos – embora tarde demais – a buscar nela o perdão perante Deus. Sygne – in fine – escapa então aos machos, à dominação masculina, ao preço de seu ser e se reencontra além do serviço dos bens, sem no entanto que aquilo que fosse da ordem da Polis não seja restaurado, nem à sua geração, nem à do seu filho (veremos porquê). Podemos dizer que ela se suicida por nada. Ou melhor dizer, que ela se suicida pelo nada que é, repetimos isto, o inverso das posses pelas quais os detentores viris da dominação masculina suscitaram seu destino. Ou ainda, ela se suicida por um nada que objeta contra a lógica das posses, que governa esse poder político ao qual Sygne entretanto à princípio consentiu, até indicar o impasse… quanto ao desejo. Impasse quanto ao desejo, especialmente bem encarnado por esse filho não desejado e literalmente forcluído por sua Medéia de mãe.

 

Bom, Sygne se suicida por nada e este ato é bem-sucedido para nossa pesquisa no que ele deve nos fazer perceber que se o habitual do feminino se arrola enquanto papel de esposa, mãe ou cortesã, no regime político da reprodução do laço social, a mulher como mulher, se objeta ao serviço dos bens ou a mulher se perde. E se perde com ela o desejo que se motiva tão somente da falta.

 

E se queremos situar o lugar da mulher em relação à ordem do poder, não é suficiente evocar a generalidade de uma heterotopia onde ela perderia toda consistência de não existir.

 

Quem, entre os mais materialistas de nós, acreditaria na verdade pertinente de deduzir de sua inexistência a inconsistência de Deus ?

 

Para a mulher é igual : ela não existe, assegura Lacan, mais isto não quer dizer que ela seja sem consistência. E o que nos conduz agora à pensar seguindo os traços de Sygne  é que, na modernidade, toda mulher talvez se encontre mais do que nunca conduzida a se posicionar com relação a esta forma de castração cuja proposta, na modernidade, é de claramente trair seu desejo ou seu ser de desejo, ou ainda, de trair o desejo em si, em troca do que ela é arrolada à serviço das posses ou dos bens. E deste ponto de vista, não é completamente falso dizer que a evolução da história das mulheres no Ocidente parece bem designar um tipo de reorganização desta escolha, ou até um alargamento massivo do inscrição das mulheres à serviço dos bens. E isto além mesmo da ordem familial onde a dominação masculina soube gozar desde longa data para obter os filhos que foram, desde sempre, as posses do homem, bem como por suas esposas que nunca foram menos que isto.

 

Para ser breve, se Antígona adia a solução pelo casamento e filhos para garantir o desejo dos Deuses, a ordem do significante e a particularidade de seu irmão obviamente insubstituível, a primeira versão feminina de Sygne consente à degradação do casamento completamente determinado pela lógica dos bens e das questões políticas.

 

Mas tem mais, em nossa atualidade, pois acontece que além da troca de mulheres que nas estruturas complexas do parentesco assumem ainda largamente a reprodução das famílias, as mulheres se elevam, por exemplo, ao comando de vastas organizações onde elas se fazem empreendedoras, e dessa maneira, mulheres de poder. Mulheres de poder bastante modernas, mas a serviço dos bens. E vejam que a questão que me demoro a fazer por todo tipo de razões é sobre o remanejamento da situação sociopolítica feita à mulher na modernidade. Situação que exprime, mesmo antecipa ou mesmo se deduz dessa evolução da mitologia ocidental pela qual a pluma de Claudel teria enxertado o destino da mulher ao do crucificado, nos conduzindo de uma certa maneira à menos imaginar o fim da mulher como mulher, (mulher que não existe mesmo assim…), que o enfraquecimento correlativo da histérica, militante do nada e cariátide do monumento paternal degradado desde sempre, como ela já sabe.

 

Enfraquecimento social então da histérica, a ser questionado com sua eventual obsessionalização correlativa.

 

Mas, para continuar neste evento mitológico pelo qual a pluma de Claudel terá capitonné um inevitável ponto de cruz com a imagem da mulher vindo se sobrepor à do crucifixo na mitologia ocidental, eu acrescento que, o que é indicado, segundo Lacan, não é nada mais que uma « figura fascinante, da beleza erigida, tal como se projeta no limite para nos impedir de ir mais longe no coração da Coisa. »[15]

 

A Coisa, existem todos tipos de coisas. E essa figura fascinante da beleza feminina deverá esperar, na trilogia de Claudel, pela terceira geração para que uma outra mulher, a qual por sua vez tornou-se uma figura divinizada e crucificada (a bela Pensée), arranque, nessa filiação, o desejo da maldição onde o gozo ordinário do pai (Turelure) havia colocado um impasse, como já indiquei suficientemente.

 

Então, se vos digo isto, é para nos fazer bem perceber, o quanto, para Lacan, são as mulheres as fiadoras do desejo – é o seu poder de mulher como mulher – e é um poder que, como ele assevera, erige a beleza contra o gozo da Coisa onde encontramos em Claudel uma versão paternal no gozo de Turelure, tornado em Lacan a figura paradigmática do “pai humilhado” a qual aparece bastante, de meu ponto de vista, como um pai que eu diria sobretudo humilhante.

 

Figura obscena, em todo caso, do gozo colocando o desejo em impasse. E eu acrescento que se foi preciso três gerações para que o desejo encontre seu desembaraço na trilogia de Claudel, é também porque foi preciso esperar a terceira geração para emergir em cena a beleza de uma mulher judia e cega. Tendo entendido que Sygne deixa no mundo um menino não desejado de quem o pai, Turelure, cobiça a noiva, ao mesmo tempo em que o inclui no seu próprio gozo pois este filho se conduzirá a copular com a amante (de Turelure) com o qual o jovem Lacan, de 1938, fez o arquétipo do pai humilhado, e a causa da grande neurose contemporânea que ele acreditava então perceber. Assim também Lacan acreditava perceber então o famoso declínio do imago paternal, cujo diagnóstico, do meu ponto de vista – vejam minhas últimas obras[16] – é um dos recursos mais potentes do que eu considero como o maior desvio que arrisca hoje levar a psicanálise a um tipo de ortopedia do pai onde ela (a psicanálise) se recusaria por sua vez aos seus próprios valores ou ao seu ser mesmo; mas onde também, política indispensável, ela poderia concorrer, mesmo com seu corpo que se defende, e de maneira, digamos, assustadora, a esse tipo de revolução nacional que ameaça estar hoje engatilhada e que vemos desenhar-se via a promoção no plano das massas de um ideal nacionalista passando pela bem nomeada « desdiabolização » do gozo de um pai que, neste caso, vale tão bem como encarnação moderna da coisa humilhante e segregativa polarizando nosso campo político.

 

Turelure, Presidente ! Como seria possível ?

 

Bem, é um fato que aqui, na segunda geração dessa família política, ao mesmo tempo que a terceira que dá à segunda o reforço de um catolicismo militante, vemos se formar sob nossos olhos, em nosso campo político, um tipo de aliança das filhas que é própria para mascarar de seus seres o diabólico gozo nacionalista que o pai humilhante coloca à Frente. E acrescento que, se abordo aqui esta questão, o que está em jogo é muito importante, no que se refere à clínica das massas e que somente, talvez, a psicanálise possa ajudar a evidenciar o mecanismo pelo qual a beleza das filhas em política, seus seres, seus poderes, possa aqui contribuir para polarizar o desejo dos inocentes que, acreditando levar a donzela aos mais altos cargos da República, não percebem mais, ou mal, a vontade de gozo humilhante e segregativo que as filhas devem ao engendramento paternal.

 

O futuro talvez me desmentirá ao mostrar que a mecânica do desejo causado pelas filhas terá, neste caso, elevado o gozo mórbido do pai ou ainda – como limite das cariátides – nós veremos que o nojo ou o ódio inconsciente da filha pelo gozo do pai poderia dar cabo desse gozo promovendo notadamente aos mais altos cargos dessa Frente que se tornou muito estranha, um tipo de gozo homossexual macho – um tipo de lobby gay – o qual esperamos para ver como e até onde ela poderia aproximar – se (sem destruições maiores) com esse tipo de pai que, diferente de Turelure, terá sobre a cena política e então pública,  parido desta vez de algumas cariátides ocupadas em disfarçar com sua máscara de beleza loira, a vontade de gozo de uma organização paternal que por precisar ser « desdiabolizada », se autentifica então, em après-coup, como simplesmente diabólica[17].

 

Turelure, menos feliz, teria apenas dado à luz a um menino o qual o nome de Luís não foi suficiente para recobri-lo deste manto de beleza que recai sobre as mulheres de encarnar oportunamente para recobrir um tipo horrendo de gozo paternal desde onde procedem suas vidas.

 

Alguma coisa está podre no campo do Outro (a escrever S (Ⱥ)).

 

Sim, eis certamente uma das formulas constitutivas da subjetividade moderna, que seja para pensar com Lacan. Mas acrescento, para fins de análise política, quer o gênero do sexo engendrado pela coisa paternal não introduz ao mesmo destino sociopolítico, quer se trate de uma filha ou de um filho, de Turelure ou do pai da Frente. Porventura, somente talvez, a psicanálise poderia ajudar a perceber, como nossa disciplina aparece talvez incontornável no que diz respeito à análise daquilo que emerge sob nossos olhos no nosso campo político de hoje, desmentindo também o fato de que o poder político é perfeitamente separado dos complexos familiares e que o poder, neste campo como em outros, escaparia aos efeitos da diferença sexual.

 

De onde a necessidade hoje de engajar uma pesquisa que esboçaria um tipo de retomada deslocada do texto de Freud (de 1925) e que poderia ser intitulada « Algumas consequências políticas da diferença anatômica entre os sexos »18. Consequência política então e não mais simplesmente psíquica.

 

De onde minha imprudência a evocar para este dia a figura majoritária de uma mulher de poder em nosso campo político que naturalmente aparece evidentemente primeiro como uma filha.

 

Enfim, e uma vez que eu propus evocar o esquema diretor da antropologia psicanalítica que domina nossos trabalhos, diria para totalizar que o que se percebe melhor agora, ao menos eu espero, é que a mulher como mulher, a verdadeira mulher na sua completude de mulher está situada do lado do ser e que isto tem importantes incidências no que se refere à situação com relação ao poder, com relação ao campo sociopolítico da clínica do caso e da das massas. O poder dos machos se situa quanto à ele, mais claramente do lado das posses.

 

Desde onde se deduz uma desarmonia entre os dois sexos sem relação sexual, certamente, mas não sem relação, pois vimos do ponto de vista do campo político, o ser sublime de Sygne é enganada em todos os sentidos do termo, pelos homens aos quais ela se encontra socialmente vinculada.

 

O que faz primeiramente a figura emblemática da mulher confrontada a esta forma moderna da castração pela qual, repito, seu desejo é retirado do sujeito que, em seguida se encontra lançado à ordem social, uma ordem aqui abominada. Sygne torna-se então um bem à serviço dos bens da dominação masculina. Mas, para meu breve esquema diretor, não situo aqui nada mais que o que, da mulher, consente desde sempre a se colocar ao serviço do bens para assegurar ao mesmo tempo a produção do que Lévi-Strauss chamava de As estruturas elementares do parentesco que são, naturalmente, polimorfas. A mulher, nessa tecelagem do laço social, torna-se esposa, mãe, e se for o caso, amante.

 

Relembramos então que, neste registro das posses, os machos trocam as mulheres como bens entre os bens. E, nos perguntamos, por que então o poder da troca dos bens como o poder político volta-se então, tradicionalmente, aos machos ?

 

Eu responderia claramente : porque sim !

 

Porque sim o quê ?

 

E bem, não existe outra razão que aquela que eu chamaria a razão sexual do poder das posses, um poder ao mesmo tempo arbitrário, quer dizer, fundado no imaginário corpo viril ; poder que é então arbitrário e no entanto universal. De onde o fato que, como eu já havia indicado19, não existe traços do matriarcado na história das civilizações, nem de idealização da mãe. É então um fato arbitrário e universal que a idealização em todas as civilizações é para o homem e que existe então um tipo de complacência somática no princípio universal do poder das posses da dominação masculina, hoje de uma fração ao menos no Ocidente.

 

Mas, digamos que, do ponto de vista da psicanálise, quem tem é o pai e mesmo o pai morto, e que tem o quê ? E bem, para Freud, é aquele que possui as virgens.

 

O que explica o motivo em particular de, do lado das mulheres, ser exatamente a virgem quem é idealizada e não a mãe. Mas a virgem é naturalmente do lado do nada, do lado do ser. O que faz o casal ideal, é mesmo o pai morto, ou deteriorado, e a filha ou a donzela.

 

É então pouco surpreendente do ponto de vista freudiano, de observar a incrível capacidade de polarização no nosso campo político deste casal constituído de uma filha, que eu diria, primeiro casada com seu pai mas também polarizada pelos seus amigos homossexuais machos.

 

E não é também incoerente de observar nessa lógica que esta filha conduz uma política, não no registro das posses onde se situa amplamente o resto do campo político, mas do lado do ser (ser francês), enquanto que é o registro econômico dos bens que, de maneira dominante, mobiliza de maneira extensiva o resto dos partidos do nosso campo político, fazendo do discurso político isto que se tornou largamente hoje : um discurso econômico.

 

Então, existe de fato um poder político da filha em nosso campo político. Há um poder do ser recobrindo o querer de um pai que teve a genialidade de perceber no ser da virgem o manto do ritual apropriado para recobrir sua diabólica vontade de segregação.

 

Eis então um rápido raio de luz analítica sobre a mulher de poder, talvez a mais poderosa do nosso campo político, e que por conduzir a partir de seu ser uma revolução nacional neste momento, como eu já disse, nas suas mãos, deve ser sem mais delongas levada em conta para nossa clínica das massas a qual procuraria elucidar ao menos em partes a incidência do poder no feminino na atualidade do mal-estar.

 

Sygne, por sua vez, não queria o querer de Turelure. Certo, mas ele era seu marido e não seu pai.

 

Em resumo, do lado do ser, do lado da mulher como mulher, há então usos diferenciais do poder do ser do qual a incidência maior é, repitamos, muito geralmente de causar o desejo.

 

Mas trata-se aqui dos usos do poder da mulher completa, o poder das mulheres que continua do lado do ser e naturalmente, para nosso esquema, resta que a mulher descompleta aquela que se faz mãe, esposa ou cortesã, abandona o registro do ser por aquele das posses e pelo serviço dos bens onde ela exerce outras modalidades de poder que nós iremos igualmente elucidar. Que contemplemos por exemplo – no que se refere ao poder da cortesã – a influência na corte do Rei da França da bela Madame de Montespan, a favorita de Luís XIV com quem ele teve sete filhos sem jamais ascender ao status de esposa, pois, como bem entre os bens, foi a infante da Espanha a escolhida como esposa do jovem Rei por sua própria mãe com a louvável ambição de pôr fim aos vinte e cinco anos de guerra entre a França e a Espanha.

 

Aqui verificamos que o regime da troca de bens ou de mulheres se faz pelo bem da Polis e que, se for preciso por razão analítica distinguir entre ser e ter, não é com fins de idealização, mas sim de progresso da análise clínica para qual enfim indico que além da verdadeira mulher localizada no registro do ser, a esposa ou a cortesã estão dispostas no campo do político do lado das posses e como posses.

 

E eu não poderia concluir este breve esquema sem evocar a campeã incontestável das mulheres de poder, a saber, a mãe cujo poder fetichista é também situável no registro das posses. Poder da mãe que pede sem cessar para ser reduzido, ao ponto em que eu poderia dizer,  para ser moderno, que a barriga de aluguel é exatamente o processo maior que a cultura exige de cada mãe.

 

Fim então deste esquema diretor onde vemos que a mulher colabora como mãe, esposa ou cortesã ao gozo masculino dos bens e que há nisto um mais-além do serviço dos bens no qual a mulher como mulher, a verdadeira mulher, em sua completude de mulher, diria Lacan, se distingue ao exercer de maneira polimorfa um poder do ser. Como aquela que se fez soldado deste pai que a reconheceu como apropriada a encarnar o ideal nacionalista de uma Joana a qual o programa político visa in fine à reduzir tanto a lógica das trocas como à negar a responsabilidade dos atos do sujeito para retenir contra ele sua responsabilidade de ser, ser judeu, muçulmano, estrangeiro, etc.

 

Sygne, por sua vez, recusa de fazer-se de soldado de Deus e indica por aí uma outra saída[18].

 

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[1]                     J. LACAN, Seminário, livro VIII – A transferência, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed, 2010.

[2]                     P. CLAUDEL, « L’Otage », La Trilogie des Coûfontaines, Paris, Gallimard, 1965, p. 219-307.

[3]                     Id., p. 232.

[4]                     Id., p. 227-228.

[5]                     M. ZAFIROPOULOS, La question féminine, de Freud à Lacan : la femme contre la mère, Paris, Puf, 2010.

[6]              S. FREUD, “ Psicologia de grupo e análise do ego”,  Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1996, vol. 18.

[7]              S. FREUD, “ O tabu da virgindade”, op. cit., vol. 11.

[8]                     P. CLAUDEL, « L’otage », op. cit., p. 262.

[9]                     Id., p. 263.

[10]                  Id., p. 269.

[11]                  Id., p. 273-274.

[12]                  J. LACAN, op. cit., p. 399.

[13]                  P. CLAUDEL, « L’otage », op. cit., p. 297.

[14]                  J. LACAN, op. cit., p. 346.

[15]                  J. LACAN, op.cit., p. 382.

[16]                  M. ZAFIROPOULOS, Du mythe du Père mort au mythe du déclin du père de famille…où va la psychanalyse ? Essais d’Anthropologie psychanalytique I, Paris, Puf, 2013 ; Le symptôme et l’esprit du temps. Sophie la menteuse, la mélancolie de Pascal, et autres contes freudiens – Essais d’Anthropologie psychanalytique II, Paris, Puf, 2015.

[17]                  Oito meses após minha intervenção a história se acelera e « O escritório executivo da Frente Nacional, reunido em formação disciplinar, deliberou e decidiu, com maioria requisitada, pela exclusão do Sr. Jean Marie Le Pen como membro da Frente Nacional » anuncia um comunicado difundido na quinta-feira 20 de agosto de 2015, como para não somente confirmar o bem fundado da hipótese que eu avançava no 07 de janeiro de 2015, mais sobretudo demonstrar que a psicanálise « é uma ciência social » (como já apoiava Lévi-Strauss) e aqui uma ciência política sem a qual seria bem difícil de se localizar quanto ao que eu chamaria a incidência dos complexos familiares no centro mesmo do campo político. Dessa forma os especialistas ou simplesmente o leitor interessado terá talvez menos resguardo ao se reportar ao uso que eu faço da experiência psicanalítica para entender as práticas políticas, mesmo das guerras, como me dei conta − mas no après-coup − no primeiro volume dos meus ensaios de Antropologia Psicanalítica « Du Père mort au déclin du père de famille : où va la psychanalyse ? » e poderia ser também que meu ponto de vista sobre o funeste destino da orientação da psicanálise motivado pela ideia do declínio do pai não seja também totalmente desnudado de lucidez.

18                  18 O título do texto de Freud de 1925 é « Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos » (1925), op. cit., vol. 19.

19                  19 M. ZAFIROPOULOS, « Qu’est ce que le matriarcat? », Du mythe du Père mort au déclin du père de famille, op. cit. ; La question féminine de Freud à Lacan ou la femme contre la mère, op. cit.

[18]                  Tradução: Juliana KÖNIG BORNHOLDT, Marcos VINICIUS BRUNHARI.